Considerações Importantes

Chegar até aqui é fácil; há portas de entrada e de saída em todos os lugares. Saber o que catar é outra história. Outsiders são bem-vindos, pois se sentirão em casa - quanto aos outros... Talvez possam achar o que lhes preste.
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pérola da vez

"a única verdade é o amor para além da razão" - Musset

18 março, 2009

Micro Conto #3: Pais e Filhos

Mas que susto aquele casal não levaria se seus filhos dissessem aonde realmente estavam indo...

12 março, 2009

Colóquio com Mefisto

"Acabou! palavra tola! Acabou por quê? Acabou e depois nada, a indiferença plena! De que serve o eterno criar, se a criação em nada acabar? 'Acabou!' O que ler desse verbo? É como se não tivesse existido E ainda assim gira em círculos, tivesse ele sido. Pois o eterno vácuo eu teria preferido!" (Mefistófeles em "Fausto", de Johann Wolfgang von Goethe/Tradução de Jostein Gaardein em "O Mundo de Sophia")

Colóquio com Mefisto
É um desses dias frios, quando se para pra pensar, fazer uma limpeza no armário, pesar as decisões e analisar a própria vida e conduta. O humor em harmonia com o clima, cinza, grisalho da cor da melancolia. Em cima da mesa cartas fechadas, jornais velhos e uma garrafa vazia de conhaque. Onde estava mesmo? Ah, sim... Pesar as decisões. Um pouco ébrio, bastante para ser honesto, e com a testa ardente seja pelo fogo da lareira ou da bebida é como decidi começar a rever meus valores. A madeira estala na lareira e exala um perfume suave. O sol, emoldurado na janela, faz sua descida preguiçosa iluminando o céu com uma luz difusa, quase metafísica. Os olhos ardem também, embaçam... de repente tudo é sombra e mancha.
Bem ali à poltrona, tenho certeza, há alguém sentado com a cabeça repousada em uma das mãos. Posso distinguir sua silhueta elegante e imponente a me observar com olhos vorazes e flamejantes.
"Quem é?" pergunto com a voz rouca.
"Sou o diabo Mefisto, seu nome já sei, um prazer". Faço menção de me levantar, mas ele continua: "Não, não é preciso. Dispensemos as cordialidades, sim?"
"Não o esperava aqui."
"Acredite, me esperou a vida inteira." Ele parecia confiante do que dizia.
"Não imaginei que me mandariam um diabo"
"Não lhe mandaram nada, por isso vim. E pode apostar, sou melhor que o anjo Gabriel. Nesse momento sou tudo de que precisava." Era um homem que inspirava franqueza e cordialidade, parecia saber de muitas coisas e era repleto de um ar erudito muito persuasivo, tanto que acreditei que realmente o esperasse.
Não estava muito animado quando respondi: "Claro, claro que é... Mas por que veio? Quero dizer, pode mesmo ajudar?"
"Isso depende." E nesse ponto arqueou ligeiramente uma das sobrancelhas. "Depende do que está disposto a sacrificar. Façamos uma troca, pode entender? Eu não sou bom, ser bom não tem graça. Prefiro ser justo. Sim, justo é melhor, embora mais difícil, mas eu até que me arranjo bem. E você como é?"
Pensara sobre o assunto o por-do-sol inteiro e não chegara a uma conclusão. "Sou bom...". As palavras saíram estranhas da minha boca e fiquei constrangido por elas, tentei explicar: "Sigo o manual, sabe como é. Bom homem, bom cidadão. Não incomodo ninguém e a maioria das pessoas que conheço me quer bem. É assim que sou: bom."
Ele abriu um sorriso largo e seus olhos brilharam, inclinou-se um pouco hesitante e disse bem baixo como que para ninguém ouvir: "Me diga o que eu nunca entendi: vale a pena?" Como não respondi, ele continuou sussurrando. "Não tem vontades, ambições? Sabe que teu Pai não te possibilitou ter tudo, que para ter é preciso, bom, é preciso mais que ser bom. Nunca pensou no que poderia ter se fizesse só o que lhe conviesse. O teu vizinho, por exemplo, que tu cumprimentas toda manhã, mas que te encolera por olhar tua esposa com desejo tão descarado. Quer mesmo ser bom com ele? E se eu lhe dissesse que não Paraíso algum; que não existe nada além desta vida e que terás que viVê-la novamente por toda a eternidade. E então, ainda viveria a privação de ser bom?" Fiz que não entendi e de fato não estava muito para esse tipo de conversa. Fiquei olhando para o fogo que agora era a única luz dentro da sala. O crepúsculo já terminara a alguns minutos.
"Você deve estar pensando", insistiu. "Não se pode fazer tudo o que quer, tem-se que pensar no próximo" imitou a voz do meu pai, o que me assustou um pouco. Em seguida continuou com sua própria voz sólida e grave: "O que tenho de mais valioso para te dizer é que seu pai estava enganado, ou pelo menos o disse por que não me conheceu. Eu posso fazer com que tenhas tudo que desejar. Mas como disse antes, façamos uma troca, de acordo?"
"Que tipo de troca?" O seu discurso começava a me interessar.
"Veja bem: Você tem sido bom. Por quê? Não responda, eu digo. Tem sido bom porque é fraco. Sabe que se for justo será mal visto, que se for mau será punido. Mas e se eu lhe oferecesse a imunidade ao mau julgo e punição. Que acha? Bastante vantajoso, não?"
"Mas e a minha parte do acordo?"
"A claro, a sua parte. Não é nada demais, acredite, uma coisinha. Quero a sua alma. Nenhuma novidade, foi assim com Fausto. Ah, você não leu nada sobre Goethe, não é mesmo? Sei que não. Mas sua incultez agora será compensada, basta apertar aqui..." Ele estendeu a mão musculosa mais sutilmente do que um homem conseguiria e ficou ali, a oferecê-la. Eu olhava aquela garra com linhas tão certas e tentadoras. As unhas manicuradas, palma limpa e dedos de pianista. O que poderia haver de mau naquela mão?
"Ainda não está convencido?" disse e abriu outro sorriso. "Veja bem: A eternidade não é nada, meu caro. Muito tediosa, se quer a minha opinião. Nada muda, tudo no mesmo lugar. Não há pôr-do-sol, nem alvorada ou desabrochar de flor, nascimento ou morte. É uma eterna estagnação. Onde o tempo não passa, nada acontece. E, quando estiver lá, vai ter a oportunidade de descobrir que o que vale a pena mesmo está bem aqui no mundo do perecimento. Só aqui há prazer, dor também, é claro, mas há sensação. O Éden é tão insosso com suas milhares de frutas que não chegam nem aos pés da única proibida. Acredite, só essa tem um néctar que valha a pena. Perto dela as outra são uvas-passa. Pense bem. Quer mesmo abrir mão de usufruir do corpo enquanto ainda o tem para poder gozar de um espírito imaterial? É isso? Ser um anjo? Sem sexo, sem prazer, sem dor, sem beleza, sem nada. Apenas com a eternidade? O que se faz com a eternidade quando não se tem um corpo para usar, sentir e experimentar? Não seja tão pueril. Te ofereço tudo o que podes ter aqui e agora e só peço aquilo que terás amanhã, há sentido em recusar? De qualquer forma, firmando ou não contrato, você perde de um dos lados. Não sou bom, já disse. E você quer ser o que?
Me equilibrei nas pernas vacilantes e o fitei pela primeira vez. Ele sorria loucamente. O coração palpitante, a cabeça ainda girando. Ele se levantou também e pude ver que éramos da mesma altura, falávamos como iguais. Olhos na mesma linha. Franzi o cenho ele relaxou o rosto e sorriu amigavelmente, sabia o que eu estava pensando. "E então, o que me diz?"
"Se conhece mesmo", comecei, "assim tão bem como dizes a natureza humana e as vantagens daqui e de lá, se nosso acordo limitar-se somente ao que se foi falado e ao que eu realmente entendi e estiver ciente de que ele só será válido se estiver mesmo sendo honesto, então saberá a minha resposta."
Ele deu um passo a frente. Sua mão era como uma brasa que comprimia a minha.